O
Hábito de Caminhar Pela Natureza
Rompe os Muros Invisíveis da
Rotina
Carlos Cardoso Aveline
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O texto a seguir constitui o capítulo 15
do livro “A Vida Secreta da Natureza”,
de Carlos Cardoso Aveline, terceira edição,
Editora Bodigaya, Porto Alegre, 2007,
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“Navigare necesse, vivere non
necesse”,
diziam os antigos navegadores. E, de fato, na primeira metade do século 21 não
pode haver dúvida de que navegar, ou viajar, é necessário. A ciência moderna
demonstrou que viajar é viver, porque tudo o que existe flui em um eterno
movimento.
O
núcleo de cada átomo do universo é como um pequeno sol em torno do qual
navegam elétrons em alta velocidade. Nossa galáxia é regida pela lei do
movimento. A própria palavra “planeta”, que vem do grego, significa “errante” ou
“viajante”. A terra já foi comparada a uma nave espacial, devido à sua viagem
incessante em torno do sol. Além disso, nosso planeta gira em torno do seu
próprio eixo, o que dá origem aos nossos dias e noites.
Parece pouco? O sistema solar também está em
peregrinação. Ele viaja à velocidade de 960 km por minuto ou 57.600 quilômetros
por hora em direção à estrela Vega, a mais brilhante da constelação de Lira.
Felizmente, Vega não está parada. Ela se desloca pelo cosmo numa direção e com
uma velocidade que garantem pelo menos uma coisa: ela nunca será alcançada por
nós. [1]
A
mudança e o movimento - tanto internos como externos - são, portanto, o estado
natural de tudo o que existe. Qualquer imobilidade ou estabilidade são
subjetivas e passageiras. Permanentes são a transformação e a harmonização
dinâmica das coisas em todo o cosmo. A cada desarmonia, segue-se uma harmonia
maior e mais completa.
Se
tudo está em movimento e nada existe fora da dança do universo, não há motivo
para que nós queiramos viver permanentemente fechados entre quatro paredes, como
se fosse possível existir sem transformar-se. É só quando perdemos o contato com
o ritmo natural da vida que o escritório, a fábrica, o apartamento ou a casa
passam a funcionar como modernas prisões, ricas em recursos tecnológicos.
Segundo o filósofo Karl Gottlob Schelle, viver
continuamente em atmosferas confinadas amolece o espírito das pessoas e
enfraquece o seu bom senso.
“O
movimento do corpo não é diretamente uma das condições da vida”, escreve
Schelle, “e sua ausência não desencadeia irremediavelmente a morte ... mas ele
é, no entanto, uma condição indireta. Ele é indispensável para a saúde do corpo
e para o bom funcionamento do organismo.” [2]
A
preservação da força vital passa pela simplicidade voluntária. Basta caminhar
regularmente ao ar livre e conviver com o ambiente natural para recuperar e
manter a vitalidade. A antiga arte de passear pela natureza rompe os muros
invisíveis da rotina e amplia nossos horizontes pessoais.
É
verdade que essa arte meditativa nem sempre precisa ser praticada a pé. A
bicicleta e o cavalo são alternativas admissíveis, até certo ponto, porque
permitem andar em silêncio, em baixa velocidade, em contato com o vento,
percebendo a magia da natureza e participando do mistério da sua paz.
A
arte de viver com sabedoria inclui a necessidade de manter o corpo físico
saudável e acostumado ao movimento. Isso nos estimula a tomar duas providências.
A primeira é incorporar um pouco de trabalho físico à nossa rotina diária. A
segunda é adotar o hábito de meditar caminhando. Passear e contemplar
a unidade da vida são duas atividades que podem ser feitas ao mesmo tempo.
Quando caminhamos pela natureza com o espírito livre de preocupações, nosso
sistema nervoso relaxa, o sangue circula com mais força e vitalidade, o cérebro
e o coração têm sua vida renovada. Em todo o organismo, a vitalidade flui
melhor. Enquanto isso, podemos contemplar o processo da vida ao nosso redor e
perceber mais claramente a nossa identidade profunda com os outros seres.
Outra questão é saber o que o caminhante carrega consigo
durante o passeio. Afinal, cada espírito humano possui uma espécie de bagageiro.
Ali vão inúmeras lembranças, idéias, crenças, projetos, e alguns princípios
éticos. Nem sempre carregamos bagagens agradáveis em nosso espírito. Há também
feridas e cicatrizes da alma guardadas ali. Uma coisa é certa, porém. O bom
passeador não aceita angústias e ansiedades como parte da sua bagagem. Enquanto
pedala ou caminha, ele esquece as atividades de curto prazo e expande sua
consciência. As preocupações vão desaparecendo junto com as outras formas de
apego emocional. Esse processo de relaxamento é ajudado pelas reações
bioquímicas que o exercício físico moderado causa naturalmente no corpo humano.
O espírito do caminhante se eleva até que um dia ele passa a perceber em todas
as coisas o princípio universal do equilíbrio e da harmonia.
É
com esse estado de espírito vasto e sereno que devemos caminhar. Aquele que
possui uma mente aberta e um coração puro sabe escutar melhor o som do vento nas
folhas das árvores. O aprendiz da sabedoria ouve o cântico dos pássaros e
aprecia o nascer do sol sem pressa ou apego. Com a mesma tranqüilidade que tem
ao observar o vôo de um pássaro no céu, ele vê as ondas de pensamentos e
sentimentos no espaço interior da sua própria consciência.
Na
verdade, não há uma separação entre o mundo interno e o mundo externo. De um
lado, as nossas emoções são influenciadas pelo que está fora de nós. E de outro,
sempre julgamos o mundo externo a partir daquilo que carregamos em nossa própria
mente e nosso coração.
Há
milhares de anos, diferentes tradições religiosas usam longas peregrinações por
terras desconhecidas como meio e método para a libertação dos apegos interiores.
É preciso abrir mão tanto dos objetos externos como dos conteúdos internos, para
conhecer a liberdade espiritual. O budismo, o hinduísmo e o cristianismo têm
disciplinas espirituais que incluem o abandono da vida “normal” - feita de
hábitos e compromissos - para viajar pelo mundo durante um período indefinido
de tempo.
As
caminhadas curtas também são parte daquilo que, não por acaso, passou a ser
chamado de “caminho interior”. O ato de caminhar era um item básico da vida
cotidiana e
da disciplina espiritual nas escolas de filosofia do mundo antigo.
Para
o cidadão moderno, os passeios a pé, de trinta ou quarenta minutos diários, são
exercícios eficientes de meditação e higiene mental. Alguns alegam que não têm
tempo para isso. O argumento é compreensível. O hábito de caminhar exige que se
abra mão da rigidez e da imobilidade. É necessário renunciar à rotina da pressa
emocional para olhar o mundo de outros pontos de vista, enquanto mantemos o
corpo em movimento e observamos o fluxo de nossos sentimentos e pensamentos.
A
prática do desapego está de tal forma associada à arte de passear que, para o
escritor chinês Lin Yutang, “o verdadeiro viajante é sempre um vagabundo, com as
alegrias, as tentações e o sentido de aventura que tem o vagabundo. Viajar é
andar à toa, ou não é viajar”. Segundo Yutang, “a essência da viagem é não ter
deveres nem horas marcadas”. É recomendável esquecer os assuntos pessoais.
Ele
acrescenta:
“O
bom viajante é o que não sabe aonde vai, e o viajante perfeito é o que não sabe
de onde vem. Nem sabe seu nome e sobrenome. (...) É provável que esse viajante
não tenha um único amigo em terra estranha, mas, como disse uma monja chinesa,
‘não estimar a ninguém em particular é estimar a humanidade em geral’.
Não ter um amigo particular é ter a todos por amigos. Esse viajante, que ama a
humanidade em geral, mistura-se com ela e vagueia, observando o encanto das
gentes e de seus costumes.” [3]
Defensor da espontaneidade, autor de obras marcadas pelo
espírito taoísta, Yutang afirma que o equipamento mais necessário para quem
passeia “é um talento especial no peito e uma visão especial debaixo das
sobrancelhas”. Ele prossegue:
“O
que interessa é saber se o viajante tem coração para sentir e olhos para ver. Se
não os tem, suas excursões à montanha são pura perda de tempo e de dinheiro; em
compensação, se os tem, poderá conseguir a maior alegria das viagens sem ir
sequer às montanhas, mas permanecendo em sua casa e olhando os arredores, e
percorrendo os campos para contemplar uma nuvem fugitiva, ou um cachorro, ou uma
cerca, ou uma árvore solitária.” [4]
Em
meio à natureza, o caminhante renova a sua vitalidade física enquanto medita. Se
meditar é expandir a consciência em direção ao que é imenso, sagrado e muito
maior que ela própria, então é possível haver meditações inconscientes e
involuntárias. E é isso que ocorre quando caminhamos. O convívio com plantas e
animais nos ensina que a inteligência universal está por toda parte. Há uma
inteligência nas orquídeas. Os pássaros têm sua linguagem. O vento sugere
coisas. As árvores são seres evoluídos. Para o escritor Maurice Maeterlinck,
cada planta que encontramos pelo caminho é um ser dotado de inteligência:
“Não
é somente na semente ou na flor, mas em toda a planta, caule, folhas e raízes,
que se descobre, se quisermos inclinar-nos por um instante sobre seu humilde
trabalho, numerosos sinais de uma inteligência perspicaz. Lembre-se dos
magníficos esforços em direção à luz feitos por galhos contrariados, ou a luta
criativa e valente das árvores em perigo.”
E
Maeterlinck narra o drama de uma grande árvore situada à beira de um precipício,
cuja pedra de apoio caíra, mas que se sustentava miraculosamente lançando novas
raízes ao solo para evitar o pior. Espetáculos como esse são relativamente
comuns nas margens dos rios atacados de erosão. [5]
Depois de discutir a questão da inteligência dos vegetais
e dos insetos, Maeterlinck aborda em poucas palavras um tema central da
filosofia esotérica:
“Mas
que pouca importância tem, no fundo, a questão da inteligência pessoal das
flores, dos insetos ou dos pássaros! Que se diga, a propósito da orquídea como
da abelha, que é a Natureza e não a planta ou a mosca que calcula, combina,
adorna, inventa e raciocina. Que interesse pode ter para nós essa distinção?”
Na
verdade - acrescenta Maeterlinck - também os conhecimentos humanos fazem parte
da natureza. Nossas pequenas inteligências pessoais são parcelas de um conjunto
maior: “Todos os nossos motivos arquitetônicos e musicais, todas nossas
harmonias de cor e de luz, etc., são tomadas diretamente da Natureza”.
[6]
Sabendo disso, o bom passeador caminha ou pedala em
harmonia com o cosmo, tanto na avenida de uma grande cidade como na beira do mar
ou na trilha de um bosque. Ele percebe a unidade da vida e se reconhece como um
pequeno ser participante da grande inteligência universal. Por esse motivo, o
caminhante sente que nada tem a temer do passado, do presente ou do futuro. Ele
vê que, no fundo, a paz comanda a vida - não só aqui e agora, mas também em
todas as partes, e sempre.
NOTAS:
[1]
“O
Livro de Ouro do Universo”, de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, Ediouro,
2001, 509 pp., ver p.136.
[2] “A Arte de Passear”, de Karl Gottlob Schelle, Ed.
Martins Fontes, SP, 2001, pp. 16-17.
[3]
“A
Importância de Viver”, de Lin Yutang, Ed. Globo, Porto Alegre, quarta edição,
1959, tradução de Mário Quintana, 360 pp., ver p.
267.
[4]
“A
Importância de Viver”, obra citada, p. 269.
[5] “La
Inteligencia de las Flores”, de Maurice Maeterlinck, Ediciones Nuevo Siglo,
Buenos Aires, 1997, 126 pp., ver pp. 13-14.
[6]
“La Inteligencia de las Flores”, obra citada, ver pp.
59-60.