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sexta-feira, 18 de junho de 2010

A dor do envelhecer em abandono

por Eduardo Bezerra

Durante quase oito anos fui gerente da Política de Atenção à Saúde da Pessoa Idosa do Recife. Essa experiência me proporcionou uma profunda mudança na forma de ver a vida, perceber o envelhecimento e compreender as pessoas. Por outro lado não houve uma grande modificação na forma de conviver com os idosos uma vez que a minha própria história é repleta de uma vivência espontânea e respeitosa com a velhice. Fui agraciado com o presente de ter uma boa parte dos meus avós por um bom tempo em minha vida e hoje, ainda tenho um que posso abraçar e pedir a bênção.

Voltando à minha experiência profissional, aprendi que a velhice é o produto daquilo tudo que você fez sua vida toda. Ninguém colhe mamão com um quintal de laranjeiras. E conheci os abrigos. Na realidade o nome técnico não é esse, mas essa tradição brasileira de tentar mudar o nome das coisas para reduzir os preconceitos não me sensibiliza de jeito nenhum. Só para matar a curiosidade, hoje estes locais são chamados de Instituição de Longa Permanência para Idosos. Em um país que tem uma “elite” intelectual imbecilizada pelo vírus do politicamente correto, isso não diz absolutamente nada.

E nestes abrigos vi histórias de vida se empoeirarem, mofarem no esquecimento do frio tratamento profissional, serem chamados de vovôs por pessoas que nem se importavam com seu passado. Conheci instituições de caridade, para ricos, públicas, religiosas, improvisadas, caça níqueis, tudo isso. Em algumas encontrei respeito, em outras a completa negligência, na maioria a indiferença com a alma, demonstrada por quem cuidava do corpo preso à frieza dos protocolos de limpeza. Atenção asséptica.

Em todas elas vi pessoas sozinhas no mundo. Sem parentes, amigos, nada. Para esses, estar ali ou em qualquer outro lugar era a mesma coisa. São pessoas-caracóis, a levar nas costas o mundo. Seu mundo. A maioria, porém, tinha descendência, parentesco e uma vida social além daqueles muros. Alguns poucos estavam ali por vontade própria e motivos diversos. Outros gozavam da indiferença e solidão de sua própria multidão de familiares e preferiam estar sós de verdade. Já uma outra parte forçava a própria retirada na preservação do direito à vida de filhos e netos. Em um movimento típico do filme “A Balada de Narayama”, suplicam para serem deixados de lado para preservar a existência do restante de sua manada.

A maioria está ali pelo abandono, por não ter quem sinceramente os queiram. Cuidar destes velhos significa ocupar tempo valioso e atenção. Em muitas histórias há rancores camuflados e motivações diversas. Pais ausentes, negligentes, violentos, incompreensíveis e uma dolorida vida pregressa fazem da convivência nesta fase da vida uma coisa impossível, uma lembrança diária e desnecessária de um passado a ser esquecido. O afeto é uma planta encontrada ainda semente e nutrida de acordo com o respeito destinado ao seu cuidado. Atenção parca leva a plantas raquíticas, pensas, com folhas amareladas deixadas para apodrecer no talo. Muitos do que ali estão colhem o que plantaram em algum lugar do passado.

Outros casos são fruto da criação egoísta, pelo dar incondicional a crianças individualistas que, desde cedo, aprendem a tudo ter para seu próprio e único prazer. Nada é coletivo e tudo aquilo que ameace sua paz deve ser sumariamente afastado. Não tiveram pais afetuosos e sim pais devotados. Criados em pedestal, o importante era ter sempre o mundo a seus pés. E assim, presentes eram dados além das possibilidades dos genitores, besteiras era perdoadas sem a mínima censura e os grandes erros encarados como inofensivas bobagens. Vemos tantos destes meninos e meninas entregues a uma vida de alta velocidade em carros envenenados e bebedeiras inconsequentes. Há muitos pais e mães, velhos abandonados porque hoje são um atrapalho à vida de seus príncipes e princesas.

Durante oito anos presenciei quase que diariamente o que significava a dor do envelhecer em abandono. Não sei se isso me transformou em uma pessoa melhor, só o mundo pode responder com base em minhas atitudes. A única certeza que tenho é do significado de um abraço para essas pessoas. Nunca quis saber o motivo delas estarem ali, para muitas seria como reviver a dor de ser deixado naquele local ou revisitar seus próprios erros e frustações. Mas sei que não ouvi nenhuma história feliz dentro daqueles muros. Vi uma forma patética de definhar e implorar diariamente pela chegada rápida do fim.

Retorno à minha história repleta de idosos, uns espetaculares outros pessoas normais, personalidades que ajudaram na minha construção. Hoje me protegem o olhar abobalhado do durão Luís Badu, o carinho farto e caloroso do Dona Lourdes, a voz calma do último encontro com Zó e a palavra amorosa de Dona Eurides, que me adotou como neto. Sinto-me abraçado diariamente pelos meus velhos danados do SESC, do IESA e de todos os locais por onde passei e fiz amigos. A diferença de gerações nunca foi um problema pra mim. E eu, enquanto ainda puder, ainda quero torturar muito Seu Lulinha por sua alvirrubra opção futebolística. Sou eu um velho jovem ou um jovem velho? E assim eu espero fazê-los todos eternos dentro e perto de mim.

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