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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Caminhos... Errando entre vida e bíblia  

Caminhos da cura...  

- Maria Soave -


Muitas e muitas luas atrás, eu era uma adolescente perdida na floresta da construção de minha personalidade e identidade. Adolescência é um tempo muito complicado, e um tempo de grande prova para os adultos que têm que educar e acompanhar os filhos nesta idade delicada sem nunca ter tirado diploma nenhum em nenhuma escola para um dia serem pais de adolescentes.
Muitas e muitas luas atrás, eu não sabia quem era, que sonhos tinha e para onde tinha que seguir o rumo de minha vida. Bem assim, perdida na floresta da vida.
Freqüentava o segundo grau em minha cidade... Eram os anos setenta... Movimentos estudantis, muitas greves, assembléias de estudantes, grandes compromissos políticos, um jeito bem desleixado de se vestir, cabelos sem pentear, uma forma de rebeldia nos corpos e nas roupas para simbolizar o "não" a todas as formas de opressão.
Com meu jeito rebelde, eu procurava caminhos, não sabia para onde tinha que ir, mas sabia que precisava caminhar para ser plenamente humana, para ser pessoa.
Foi neste período de minha vida que o conheci. Tinha olhos escuros e profundos como o mar à noite, quando a lua é negra; uma voz mansa e grave que parecia existir só para pronunciar palavras de extrema importância, aquelas palavras mágicas que fazem acontecer o que dizem... Às vezes, minha memória falha na lembrança dos traços de seu rosto, mas não falha na lembrança da profundeza do mar escuro e do som mágico de sua voz...
Era um contador de histórias. Sentávamos, à tardinha, debaixo de uma grande árvore para observar a natureza, ou íamos à velha estação dos trens para ver os velhos vagões de madeira passarem. Ele tinha passado muitos anos na missão africana e depois um bom número de anos nos territórios indígenas americanos. De tantos anos de missão, ficavam muitas histórias de sentidos e fundamentos para serem contadas... E lá estava eu para ouvir.
Uma tarde, o contador de histórias chegou com uma caixinha para mim. Eu a abri com a maravilha e a curiosidade de quem estava desvelando o mistério da vida. Dentro da caixinha, no meio do algodão, estava ele. Era um pequeno rato, daqueles que povoam os laboratórios de pesquisas médicas, branquinho e assustado, como eu me sentia naquele trecho de minha vida.
O contador de histórias dos olhos profundos e da voz mansa pediu-me para cuidar por um tempo daquele ratinho e para observá-lo com atenção todos os dias. Vivendo um cuidado e uma amizade com o pequeno rato, aprenderia o caminho para a minha vida, como dizia o contador de história, o caminho da medicina, o caminho da cura.
O contador de histórias tinha conhecido o caminho da cura na convivência com os índios das planícies americanas e lá estava eu para tentar caminhar por este caminho do conhecimento do próprio ser através do cuidado e da observação de um pequeno rato.
No começo, eu e o pequeno rato nos olhávamos com uma certa desconfiança e uma pitadinha de curiosidade, aliás, desconfiança e curiosidade me pareceram, desde o começo, o jeito que o ratinho tinha de se relacionar com as pessoas, com os outros animais, com as plantas e as coisas.
O pequeno rato parecia não usar nunca os olhos para enxergar a realidade. Não, ele precisava sempre cheirar tudo, bem de perto, para se assegurar da realidade e da consistência das coisas. O seu pequeno nariz vivia grudado no chão. Dificilmente erguia o olhar para ver um pouco mais além do seu nariz. Com o passar dos dias, a nossa amizade tinha já a característica da confiança, por isso eu não sentia mais muito nojo daquele pequeno ser, e ele chegava até a pegar pedaços de biscoitos de minha mão. O pequeno rato aprendeu a gostar de comer bem pertinho das minhas mãos, imagino que, ao sentir o meu cheiro, ele já imaginava um saboroso biscoito acompanhado de carinho, por isto levantava o focinho para mim e chegava até a ficar de duas patas ou a fazer pequenos pulos... Que alegria! O ratinho olhava para mim... O meu amigo ratinho sabia até pular!
Numa tarde de outono, naquele tempo mágico no qual as plantas soltam todas as folhas, num último carnaval de vida e de cores antes do sono do inverno, o contador de histórias pediu-me para devolver o ratinho. Fomos levá-lo numa estrebaria bem quente, no meio de feno e sementes, onde poderia viver com tranqüilidade todo o período do inverno. Com o contador de histórias agradecemos ao ratinho pela sua amizade e pela Medicina do Círculo de Cura que o pequeno animal tinha ensinado para a minha vida.
Segundo a tradição dos índios americanos, a cura significa tudo aquilo que possa vir ajudar uma pessoa a se sentir mais integrada com a natureza e com todas as formas de vida. Tudo aquilo que cura o corpo, a mente e o espírito é considerado pelos índios .Medicina..
Os povos indígenas, os povos vermelhos da cor da terra, vêm utilizando há muitos séculos os sinais da natureza. As criaturas vivas possuem suas próprias mensagens de cura e estão dispostas a partilhá-las com todos aqueles, que se dispuserem a aprender sua linguagem. "Haillowayain" é a linguagem do Amor na língua dos índios Sêneca. Só através desta linguagem os corações dos seres podem conhecer o caminho da sabedoria e da cura.
A linguagem do Amor pode ser compreendida toda vez que a compaixão e o respeito mútuos se complementam, fechando um círculo. A linguagem do Amor pode ser compreendida toda vez que a compaixão e o respeito mútuos são redistribuídos entre todos os seres que partilham o nosso mundo. Enviar amor a um lindo pôr-do-sol, agradecer a água sem desperdiçá-la ou abraçar com alegria uma árvore descansando na sua sombra já constitui um bom começo. Cada ser vivo e cada forma de vida representam mestres e amigos no caminho da cura. Cada um destes mestres da natureza possui um profundo amor pelo Grande Mistério e nos revela as lições que nos indicam quais os papéis que devemos desempenhar dentro da criação e nos indicam também os papéis das outras pessoas.
Compreender estas mensagens das outras formas de vida significa tornar-se "Uno" com as criaturas da natureza. É buscando a paz do povo-em-pé (as árvores), é reconhecendo o sagrado em todas as formas de Vida, é entrando em harmonia com cada ser vivo, que poderemos voltar a ser os fiéis guardiões de nossa Mãe-Terra. Uma terra sem males. Uma terra de Paz. Uma terra que não herdamos das gerações passadas, mas uma terra que pedimos emprestada para as gerações futuras.
Despedi-me do ratinho, que sabia pular com o coração cheio de alegria e de saudade de quem fica agradecida por uma amizade gratuita.
O contador de histórias começou a trançar os meus longos cabelos de adolescente, como fez muitas outras vezes para preparar-me para eu ser, também, uma contadora de histórias, e se pôs a falar com voz mansa e mágica: "Soave" o teu coração nasceu nas terras do sul. Este espaço da terra sagrada, o sul, vai ser sempre o teu ponto de partida, em toda tua vida. Para os povos indígenas, no círculo de sabedoria indígena, quem nasce no sul é como o pequeno ratinho. Precisa sempre cheirar tudo de perto, não confia só no que vê, nas aparências, porque as aparências podem enganar. Quem nasce no sul como os ratinhos, vive com o nariz fincado no chão da realidade, possui um coração generoso, mas corre o risco de nunca olhar para o céu dos sonhos, das utopias, das esperanças. Soave, quem nasce no sul, como os ratinhos, precisa aprender a voar. Soave, tu tens um bom coração, mas precisas dar asas para este coração para que não fiques só grudada à dureza da realidade. Soave, tu precisas aprender a voar ou, pelo menos, a pular! Soave, tu terias um nome indígena para este trecho de tua caminhada no caminho da cura e da sabedoria, teu nome seria .rato-que-pula..
Passaram-se muitas luas desde o tempo do contador de histórias indígenas. Muitas destas luas se pousaram nos meus cabelos. Ainda sou uma pessoa desconfiada e tenho medo de colocar os meus pés em qualquer lugar desconhecido, tenho ainda medo de voar e de pular, de dar asas ao sonho e à utopia e de acreditar plenamente que um outro mundo, que o Reino de Deus, seja possível, mas, como o pequeno rato do meu tempo de adolescente, tento dar pequenos pulos, pequenos sonhos, pequenas esperanças.
Obrigada, pedras todas e montanhas. Obrigada seres de pé (árvores). Obrigada, rios, mares e peixes. Obrigada, ar, nuvens e pássaros. Obrigada, seres huma nos e animais. Obrigada, meu povo amado. Obrigada, Vida por me ensinar a voar. Obrigada, Deus. Obrigada, amigo rato por ter me ensinado a pular. Amém.

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