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domingo, 14 de outubro de 2012


A filosofia da dor  

Paulo  Crestani 


 
A International Association for Study of Pain (IASP) define a dor como sendo uma “desagradável experiência sensorial e emocional associada a um dano atual ou potencial do tecido”. O uso da expressão “desagradável experiência” ilustra a única coisa que é irrefutável nas características da dor: subjetividade.
 
 O fenômeno doloroso possui várias dimensões: biológica, psíquica, cultural e espiritual. Devido à confluência de influências na manifestação da dor, podemos inferir que ela nos mostra sentimentos de abandono, de perda, de frustração, de culpa, de desamparo, de angústia, de vulnerabilidade, entre muitos outros. A abordagem da dor deve considerar essa multifatoriedade. Entretanto, inúmeros profissionais desconsideram essa concepção subjetiva da sensação dolorosa baseando a terapêutica apenas em uma relação causa/efeito: um distúrbio provocando dor, e só. Eles não cuidam de um doente que vive uma dor, mas sim de um corpo desvitalizado e despersonalizado, onde os sinais típicos de uma entidade universal, a doença, se expressam diante do glorioso saber médico. Isso é ignorância. Aliás, também pode ser comodismo: é extremamente mais fácil compreender o paciente como uma entidade impessoal, mecânica, inerte, sem história. Dessa forma, a dor seria totalmente explicada cientificamente, facilitando e muito o raciocínio clínico. Entretanto, para nossa alegria, há excelentes profissionais que consideram a dor com uma expressão de desconforto e arranjo defensivo do psiquismo diante da angústia.
 
 Para mim, existem dois tipos de médicos: os extremamente racionais que se aproximam do pensamento racionalista de René Descartes e os, a meu ver, sábios, que “seguem” a filosofia de Maurice Merleau Ponty. A teoria de nenhum desses filósofos versou sobre a questão da dor, e muito menos tinham intuitos ligados diretamente à medicina, mas a filosofia nos permite esse tipo de aventura intelectual.
 
 Para quem leu a palavra “filosofia”, achou chato e pensou em desistir da leitura, não o faça. Primeiro porque não irei explicar as teorias ontológicas dos autores e segundo porque não sei o que significa a palavra ontologia. Brincadeira.
 
René Descartes é fera: mostrou ao mundo uma nova maneira de pensar, inaugurou o racionalismo clássico e rompeu com a medieval tradição escolástica que dominava o conhecimento até então. O modo como produzimos o conhecimento é baseado no método cartesiano: primeiro eu duvido de tudo aquilo que não é claro e distinto, depois verifico, analiso, sintetizo e enumero. É assim que fazemos ciência, o pubmed é cartesiano. O erro de Descartes – aplicando a teoria cartesiana no entendimento e cuidado do paciente -, consiste no dualismo: a separação corpo e alma. O filósofo argumenta que nada do que os sentidos nos dizem é verdade. Ele desconsidera que as nossas experiências e percepções (alma) se comunicam com o (corpo). Desculpem-me os cartesianos, mas considero essa separação impossível. Como manejar um paciente com dor crônica se desconsiderar que as manifestações dolorosas são influenciadas e estão intimamente ligadas às sensações mentais experimentadas?

Cada pessoa vai perceber, reagir e elaborar sua dor de forma particular por meio dessa interação. Por exemplo: caso considere a dor um sinal de covardia, irei negá-la: suportarei a dor em silêncio porque isso é o que um homem deveria fazer. Caso esteja psicologicamente abalado, irei supervalorizá-la. O contexto familiar, financeiro e emocional do paciente diz muito sobre dor e como este sintoma é comunicado ao médico. É justamente isso que muitos profissionais desconsideram, mesmo que de forma inconsciente: separam a dor – manifestação do corpo – das percepções pessoais do paciente – manifestações da mente. Somente se estivermos atentos efetivamente para essa essa interação é que poderemos fazer um atendimento satisfatório.

A dor é um processo extremamente complexo e a terapêutica deve se preocupar não apenas com o alívio sintomático, mas também com as preocupações emocionais do paciente, pois, como diria Zeca Baleiro, “solidão não cura com aspirina”.
 
Maurície Merleau Ponty defende que corpo e alma se inter-relacionam. Para ele não existe diferença entre corpo e alma, entre a consciência e o mundo. Essas instâncias se confundem, o corpo é a própria expressão da mente. O modo como um indivíduo, no caso o doente, percebe o mundo, ocorre pelo entrelaçamento dos sentidos, percepções e consciência. Enganam-se aqueles que acreditam que a visão apenas olha: ela também vê, toca, sente e compreende o mundo. Essa visão se reflete no corpo. Os indivíduos são vivências sensíveis, culturais, sociais e intelectuais, acrescido do outro, do mundo e no mundo. Para o paciente, a dor é tudo isso: expressão cultural, social, sensível. Entretanto, na maioria das unidades de saúde falta conhecimento, habilidade e até interesse no manejo da dor e muitas vezes os esforços daqueles que se empenham no tratamento adequado esbarram nos preconceitos de seus colegas, e em questões de cunho político, social e econômico.
 
A conduta médica de excelência deve verificar a amplitude de fatores que contribuem para a experiência da dor e a influência que ela exerce na vida do doente e de todos à sua volta; deve compreender que corpo e alma se confundem e se influenciam; deve entender que a doença e a dor já não são mais, isoladamente, o alvo do tratamento; deve entrelaçar diversos saberes ampliando o foco de atenção e cuidados para além do paciente, também da família que dele cuida e da equipe que dele trata. Quero terminar o texto com uma frase da canção “Há tempos”, do Renato Russo, que soube cantar a dor como ninguém:
 
“Dissestes que se tua voz
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira…”.
 
A vizinhança inteira acorda e nós, muitas vezes, nos mantemos surdos.
 
 

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